domingo, 13 de julho de 2008

A peça velha










Noite fria, coração vazio e vontade de fugir. Não deu outra, sai de casa com o velho chapéu de vime na cabeça rumando pra cidade velha. Entrei no antigo cinema que agora é um teatro todo redecorado cheio de figuras que buscam singularidade.
Subi as escadas que levavam a antiga sala de projeção e fui acomodar-me nas poltronas superiores. De lá, vi o grande palco pronto pra encenar "A Perfeição Perdida" de um autor desconhecido, mas bem sacado. Os atores eram jovens e prematuros mais caiam muito bem na seqüência das cenas. Eram sujos, inocentes, mas sinceros. Percebia-se que vinham da rua. Possuíam toda a malícia dos que passaram fome e a placidez do bem alimentados. Papéis de anjos caídos são velhos e ultrapassados, mas na pele daqueles garotos retomavam vigor e impressionavam por ser cru.
A montagem como um todo era bizarra, e parecia adequada a proposta. O paraíso é realmente uma idéia defasada e a perfeição só existe nos olhos do iludidos. Revivi, alimentei o espírito e continuei caminhando.
Seis anos depois passo em frente ao velho cinema agora teatro e vejo a mesma "A Perfeição Perdida" em cartaz. Novamente subi as escadas e aproximei ao máximo da antiga poltrona.
Vi os mesmos atores com os mesmos truques sacados, os mesmos jogos simples, mas envolventes, a mesma sensualidade promiscua. Descobri que pouco basta pra um bom estado de espírito. Tomei um porre com os desgraçados no final da peça e concluímos que aquela estória pode ser repetida por quem sabe 2000 anos.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Trópico de Câncer














"Hoje estou cônscio da minha linhagem. Não tenho necessidade de consultar meu horóscopo ou minha carta genealógica. Nada sei do que está escrito nas estrelas ou em meu sangue. Sei que provenho dos fundadores mitológicos da raça. O homem que leva a garrafa aos lábios, o criminoso que ajoelha na praça do mercado, o inocente que descobre que todos os cadáveres fedem, o louco que dança com o raio na mão, o frade que ergue a saia para mijar sobre o mundo, o fanático que rebusca bibliotecas para encontrar o Verbo - todos esses estão fundidos em mim, todos esses fazem a minha confusão, meu êxtase. Se sou inumano é porque meu mundo transbordou de suas fronteiras humanas, porque ser humano parece uma coisa podre, triste, miserável, limitada pelos sentidos, restringida pelas moralidades e pelos códigos, definida pelos lugares-comuns e ismos. Eu derramo o suco da uva na minha garganta e encontro nele sabedoria, mas minha sabedoria não nasce da uva, minha embriaguez nada deve ao vinho
..." Trópico de Câncer, Henry Miller

quarta-feira, 2 de julho de 2008

temerários convictos ou verrugas com canelas











O movimento imaginativo parte sempre de um brilho de início enigmático, mas que acaba despontando dentro da cabeça vazia de sentimentos verdadeiros. Uma ida simples ao banheiro é o estímulo necessário para a avalanche de idéias desconexas, confusas e obscuras. Deitado na cama pensa nos discursos, palavras bonitas, seqüências semânticas, revezes naufragados, monossílabos tônicos mal encaixados, seqüências obtusas; tudo rodeado por um fervor criativo que transporta o sono para um momento posterior. É sensato pensar em saúde, bem estar do corpo e blá, blá, blá... é vida transbordando, é doença que acumulada mata, liquido purulento que se não escapar acaba deturpando alguma função autônoma. Parece que o coração já está avariado quem sabe o que foi?: pode ter sido o excesso de vontade, contida por porções minúsculas de moralidade que acabam asfixiando células sadias-de-funcionamento-acelerado. O corpo agora está na vertical, pensou em subir uns dois corpos acima da cabeça e virar-se na horizontal, começar a percorrer o mundo descrevendo o que sente. Quem sabe assim encontre uma noção diferente da incrustada por baixo da pele. Boiar, flutuar, ser posto num movimento sem esforço. Todo o deslocamento simplificado pela inércia.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Minha coleção de revistas













Essa história de fazer rock-cabeça às vezes dá mais trabalho do que escrever tese, proferir conferência ou defender político em CPI. Para gravar o clipe da música Last Night on Earth, de seu último CD, o grupo irlandês U2, capitaneado pelo fanhoso e enfadonho Bono Vox, colocou de pneus para o ar o trânsito da cidade americana de Kansas City. Caos instaurado, muito a propósito eis que surge o escritor maldito William Burroughs, de 83 anos, figuraça do movimento beat. No clipe, ele personifica uma força maligna que destrói a civilização condenada ao consumismo -- aquela praga engendrada pelo capitalismo que faz com que as pessoas se destituam de sua humanidade e passem a comprar toda sorte de porcaria, como os últimos discos do U2.

Fonte: Revista Veja, 4 de junho de 1997.